A última vez que nós conversamos, Dalva, foi naquele passeio de barco lá no Guaíba. Como eu poderia me esquecer? Você trocava de cabelo e toda sua personalidade e comportamento mudavam, tanto que eu fico pensando que seria possível escrever a sua biografia só contando como você escolheu moldar sua cabeça. “Moldar sua cabeça” é uma escolha engraçada de palavras, peço desculpas, mas não estou pensando direito. Está quente e sinto que o calor corre entre os andares. Parece que o fim do mundo chegou em uma massa depressiva de fogo. Moro em um desses prédios velhos do centro da cidade, tão velho que me sinto um dos últimos moradores. Naquele dia do barco eu vestia uma calça aveludada de cor roxa e uma boina herdada do meu falecido avô. Você ostentava um cabelo verde escuro escondido sob uma touca rosa, uma espécie de sobretudo e um óculos quadrado. Essa combinação lhe conferia ares de uma detetive moderninha. Era uma manhã de julho e você ficou interessada em pegar aquele barco caça-turista para darmos uma volta pelo rio. Não é à toa que tenho essa foto aqui na minha área de trabalho, no computador, a qual estou encarando enquanto escrevo essa carta. Percebo que minha escrita vai ficando mais torta, minhas mãos doem. Acho que foi a frase que você lançou em algum momento e que ficou ecoando: A vida chega para todo mundo. Em alguns meses, você viajaria de cabelo novo e sem uma data específica para voltar. E esse registro de você no barco observando as águas sujas do rio encontrando na linha do horizonte aquele céu ensanguentado do fim da tarde de Porto Alegre é o que me ficou como imagem de uma pessoa sendo moldada pela vida. Não vou mentir, está tudo se demolindo por aqui. Agora, eu entendo melhor essa imagem tomada por uma ansiedade misturada com medo. O mistério em não saber o que vai acontecer. Já tive diferentes fases olhando essa foto: rancor, desprezo, inveja – talvez a mais comum delas -, mas agora também admiração. Ser tomada pela vida assim tão jovem, deixar que as coisas aconteçam é incrível. É por isso que eu também estou pegando coragem e ficando por aqui, enquanto as coisas vão virando esse pó-cinza, toda uma constelação criada a partir do fim das coisas. Fico pensando porque o seu cabelo estava verde naquele dia, que traço de sua psique escolheu essa cor. Mas se tratando de você é mais sobre o que não quer que seja mostrado. É, então, o contrário do que deveria ser a princípio. Acho que você queria a companhia de alguém para contar a novidade e eu estava ali, mais um dos iludidos que faria qualquer coisa para ter um momento com Dalva. Fico feliz de ter transformado todo esse último encontro em uma imagem. Uma foto que eu imprimi, ampliei e deixei por muito tempo na parede da sala. Quando me perguntavam sobre, eu dizia que era alguém que conheci brevemente e que foi muito importante para mim. Escrevo essa carta, pois achei injusto você não saber disso agora que o fim se aproxima. Eu realmente gostaria que você soubesse que demorei, mas deixei a vida ir, as coisas acontecerem. Há uma carta maravilhosa do Fernando Sabino para a Clarice Lispector em que ele diz que ela parece uma árvore. E isso é perfeito. Dalva você parece uma miragem, pois agora desconfio se você chegou a me acontecer. O verde do seu cabelo na foto nunca desbotou. Mas agora eu vejo outros tons surgindo: laranja-labareda que vai consumindo o quadro, tudo ao redor, eu.
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