“Praia no inverno, sempre uma grande ideia”, ela me diz, olhando para o mar. Temperatura gelada. Fim de tarde. Julho. A ideia foi dela. Acordou de manhã cedo e sentiu que precisava ir ao litoral naquele sábado para molhar os pés na água do oceano. Argumentou que não poderia continuar vivendo se não fizesse isso.
No começo relutei, mas ela estava empolgada demais, como sempre fica quando tem os seus caprichos. Me convenceu quando disse que ela iria dirigir e eu não precisaria fazer nada.
Apenas ser a sua companhia.
A viagem foi rápida. Nos estressamos algumas vezes no caminho. Faz tempo que temos discussões bobas que acabam revelando problemas maiores. Nossa rotina é desviar cuidadosamente de assuntos que podem incomodar um ao outro.
Mas no momento ela está sentada na praia, ao meu lado, falando como foi uma grande ideia ir até Arroio Teixeira. Então, desenrola a contar das lembranças da praia, do mercado que ficava na esquina da antiga casa do seu avô e como o dono sempre dava as balas mais coloridas para ela, o que causava inveja a todas as suas amigas. Essas pessoas que conhecemos só no verão e que voltam diferente a cada ano, ou nem voltam mais.
Ela fala de um jeito empolgado, mas quando chega no fim da frase o tom da voz diminui, como se estivesse perdendo vontade. Pergunto se não vai molhar os pés, se o mar mudou de ideia e não a queria mais por ali. E ela só finge que ri. E começa a tirar as meias, uma por uma.
Ela levanta e caminha. Parece decidida a encarar o mar do inverno, a sentir a água gelada invadir os dedos. É bonita a caminhada até a primeira onda. Não há ninguém na praia e tenho a sensação de que essa é a maior intimidade que nós já tivemos.
Lá pela quarta ou quinta onda eu mal posso vê-la, se não fosse o casaco laranja encharcado. O mar está calmo, e não fico surpreso com o seu avanço. Eu a conheço bem o suficiente para saber que quando ela coloca uma ideia na cabeça não há nada que possa pará-la.
Dalva agora alcança o começo do vasto oceano. E para, imóvel. Eu nunca adivinharia o que poderia conter o progresso daquela mulher. Não sabia o que atravessava a sua mente, quando aconteciam alguns desses episódios, mas relutei em gritar. Eu apenas esperava. Ou será que ela me esperava, quando eu prometi que era apenas uma companhia.
Objetivas ficcionais
1.
O ex-escritor carrega o fardo de todos livros não escritos e que nunca serão lidos pelos seus poucos leitores. É verdade que ganhou prêmios importantes ao longo dos anos, mas nada mais fazia sentido. O ex-escritor procurava paz espiritual e foi preciso fabular uma nova história para sua vida para poder parar de escrever. É preciso substituir as obsessões. Os vícios por outros vícios. Agora, o ex-escritor tem como objetivo elevar o nível dos comentários em grandes portais de notícias. Sua tarefa é ingrata, mas ele sabe.
2.
O cachorro de pelo branco caminha de um lado para o outro no apartamento comprido, dividido por um longo corredor. Espalhando um pouco de seu corpo por todos os lados, o animal para em frente à porta do quarto principal e coça sua barriga cicatrizada por um operação de castração. Está animado. No dia seguinte, aparece mais um cachorro na casa, ele se formou a partir de uma junção de todos os pelos espalhados por ele e pelos tantos outros cachorros que já moraram anteriormente no apartamento. Os dois cachorros se encontram no meio do corredor, a criatura espelha o cachorro branco, aprende com ele. Entende que é um cachorro. A amizade entre eles se fortalece. A criatura não consegue compreender porque também não tem uma cicatriz.
3.
2004.E l e g a n t e m e n t e ela tira a roupa peça por peça. O silêncio toma conta do ambiente e são apenas dez para as nove da noite. As pernas torneadas ensaiam passos, enquanto os olhos de Eduardo dançam. Fernanda caminha, sentindo uma coceira suave no pé nu ao pisá-lo no chão. Algo muda quando vai até o aparelho e coloca o CD: uma música suave, como se a vocalista cantasse para o amante no meio da noite, deixa o ar cheio de fugacidade. Devagar, ela também começa a cantar, manhosa, sentindo que seu coração pode parar a qualquer momento. Está sim, mais próxima de Eduardo, está sim só de calcinha e sutiã. O ritmo da música aumenta e várias vozes fazem o backvocal, tudo seguindo para o refrão. Ela ainda não quer, ele sabe que ainda não é a hora. O cabelo preto curto e o sorriso grande de Fernanda não escondem nada. O desespero no olhar de Eduardo não esconde nada. O amor está nas coisas anteriores.