Contagens #2 - Onde se junta o passado, o futuro e o presente
"Eis está gravado: não no ar, em mim, que por minha vez escrevo, dissipo"
Olá!
Segunda edição da newsletter Contagens por aqui. A ideia é que a periodicidade seja quinzenal, logo, meu objetivo é enviar toda quarta ou quinta-feira, para alternar com a Redemoinho. Não consegui seguir a data direitinho dessa vez, mas, vocês sabem, não é possível controlar tudo (infelizmente).
E onde é que se junta o passado, o futuro e o presente? Como diz a música: “onde o samba é permanente, na Mangueira, minha gente”. Essa semana tive a oportunidade de assistir a uma apresentação da Velha Guarda da Mangueira, no Salão de Atos, da Ufrgs, aqui em Porto Alegre, durante o festival Unimúsica. Um show muito interessante, no qual a turma da Escola de Samba conta um pouco da história das músicas e, com isso, a própria trajetória viva da Mangueira. E uma das músicas, essa que citei, Os Meninos da Mangueira, me tocou em especial proporcionando a sensação de apreciar ainda mais essa instituição brasileira e entender a importância do conhecimento, da arte compartilhada de geração em geração. Como é o caso de muitas dessas famílias de compositores, cantores e artistas do “samba permanente”. Talvez também porque me interesse cada vez mais na história de famílias, suas quebras, afetos, ligas e decepções.
A capacidade de viajar no tempo sempre esteve no imaginário das pessoas e da produção cultural de algum modo, vide os vários livros e filmes sobre a temática. Mas acho que ainda refletimos pouco sobre como a arte oriunda de uma tradição popular é também um encontro natural entre o passado e o presente, que de alguma forma está sempre apontando o futuro. Por isso, é importante mantê-las, registrá-las, espalhá-las, pois suas existências contam a história da cultura, que ajuda a entender um local e seus habitantes. Seus trejeitos. E, em especial, nossos idosos e os seus saberes. Como é o caso da Velha Guarda.
Em outras notas: essa semana o fogão aqui de casa estragou. Acabei chamando uma empresa especialista no eletrodoméstico. Quando a dupla chegou, era um pai e um filho, aprendiz da arte de arrumar fogões. Os dois pareciam extremamente afinados, o pai ficou mais olhando, como se estivesse assimilando de longe se o filho entendeu os passos, e o filho estava sereno, apenas desentupindo as bocas para o fogo passar a fluir normalmente. Eles andavam parecidos, gesticulavam e tinham um tom semelhante da voz. Está tudo sempre lá, sempre esteve tudo lá.
Vamos para as histórias de ficção e não ficção curtas, tudo junto/misturado:
Bergamotas para sempre
Lembro do meu avô sentado no degrau em frente ao portão de casa. Parado, às vezes passava horas lá, sozinho, pensando, analisando o movimento da rua, veja só uma rua sem saída. Sempre foi simpático ele, sempre foi de brincar com os outros chamando de apelidos diferentes, mas talvez o que eu mais me lembre do meu vô seja o modo como ele cortava a bergamota. Deslizava a faca sob a pele laranja bronzeada, quase crocante da fruta, cortando-a gentilmente , praticamente moldando, tal como um artesanato. Então, metia os dedos para tirar as sementes, que ficavam por ali, na rua mesmo, para algum pássaro catar. Depois desse pequeno processo, pegava a metade da bergamota e a desfrutava também devagar, lentamente, com legítimo prazer. Não importava o tempo, o clima, lá estava ele logo depois de almoçar. Sempre.
Fechar os olhos
Saiu de cima da bicicleta para o chão com apenas um pulo. Puxou as calças para cima, levou a mão à testa, a fim de limpar o suor, e largou a bicicleta no muro mais próximo. Agora era só esperar os outros chegarem. Foi o mais rápido. Contou o tempo: levou apenas 25 minutos de casa ao parque. O trânsito não atrapalhou em nada, afinal era um sábado à tarde de fevereiro. A maioria das pessoas naquele momento deveria estar na praia, banhando-se no mar. Se pudesse, ele estaria na praia também, deixando o sol torrá-lo lentamente. Não que o sol da cidade não o torrasse, mas obviamente tudo parece um pouco melhor com areia nos pés. Do nada, a bicicleta perde o apoio e cai no chão, o barulho é abafado pela pouca grama que tenta crescer no chão arenoso. Prateada assim no chão, solta, parada, ele resolve se juntar a ela. Deitar seria bom para descansar enquanto os outros não chegam. Deitar e aproveitar a nuvem que tapa a luz e fechar os olhos só por um instante. E só por um pouco de tempo dormir, enquanto a luz não chega para nos acordar novamente.
Sem nenhum ponto de chegada
"Por que você não tira os sapatos? Encosta perto da porta, isso, devagar, não se sente melhor assim? Com os pés pisando no carpete. Em mim dá cócegas. Eu gosto".
"É verdade, eu já me sinto um pouco melhor. A sua casa é bonita".
"Me mudei há pouco tempo para falar a verdade. Foi um bocado de dinheiro, mas para que serve o dinheiro se não para ser gasto, né?"
"Acho que sim, se eu tivesse muito dinheiro eu nem sei se teria casa, acho que eu ficaria viajando por aí, sem rumo, vivendo em hotéis".
"Parece divertido".
"Pois é, imagina viver assim sem nenhum ponto de chegada, sem nada, sem se prender".
"Será? Uma hora todo mundo tem que parar".
"Ah, imagina viver por aí andando de carro, de avião, quebrando alguns quartos de hotel".
"Você é engraçada. Mas me diz, como está o seu pé, não machucou muito então, pelo jeito".
"Não, não, tá tudo certo..."
"Posso pegar uns esparadrapos aqui, eu tenho certeza que deixei em algum lugar do banheiro..."
"Não, não precisa mesmo, tá tudo certo. Eu que sou uma desastrada. Minha mãe dizia que ninguém em casa quebrava tanta coisa como eu, acho que nasci para quebrar coisas".
"Eu também sou meio desastrado, por que você acha que eu tenho carpete em casa?"
"Você é engraçado."
"Obrigado, quer uma bebida?"
"Não sei, não sei..."
"O que houve?"
"Talvez seja melhor eu ir embora."
"Mas ainda é cedo, não quer ficar mais um pouco. Deixo você quebrar o meu quarto. O que acha?"
"É uma boa ideia, mas eu não sei. Acho que vou deixar para a próxima."
"Ah, tudo bem, eu entendo. Então teremos uma próxima vez?"
"Eu gostaria."
"Eu também."
Pessoas - Da memória
Eu lhe encontrei por volta da uma da tarde, você estava sentada perto do colégio me esperando já há algum tempo, achando que a gente poderia conversar mais profundamente, mas eu estava com pressa - como sempre estou quando vou lidar com alguém da minha família. Uma pressa que me corrói. Eu entreguei os documentos e você fez a inscrição para voltar a estudar. Depois, a gente caminhou pelo bairro e fui com você ao supermercado, onde comprei itens básicos que você precisava, coisas como batata, leite, azeite e carne. Você sempre dizia para comprar os mais baratos - não foi sempre assim - e eu comprei algumas coisas a mais, porque me senti mal, mas também porque queria que você se sentisse bem. Apesar disso, a pressa ainda continuava ali, me acelerando. Depois de passar as compras no caixa, logo chamei um Uber e fiquei apenas concordando com as coisas que você me dizia: que queria conseguir acabar o EJA logo, pois desejava fazer um vestibular e que gostaria de fazer História para estudar História antiga. Apenas concordei, mas não falei o que realmente estava pensando. O carro chegou e fui me despedindo, mas você de supetão me perguntou se eu ia lhe convidar para o meu aniversário. Naquele momento, eu pausei, e, com pressa, menti que não ia fazer nada para comemorar. E então, você foi embora.
Carta 02
Demorei um tempo, confesso, para esquecer aquele amor. Nem sei se é o termo correto esquecer, acredito que está mais para algo como abandonar. Você sabe, uma hora é preciso abandonar.
E, em uma relação, há sempre o que abandona por último, que afunda com o barco. Há verdade na frase do Caio Fernanda Abreu, quando ele fala sobre remar, “Não para de remar não, porque te ver remando, me dá vontade de não querer parar de remar também...”. Embora você tenha parado de remar há muito tempo, eu não percebi. Talvez eu não olhasse para o lado o suficiente. Agora, eu sei.
Agora a gente sabe o quão necessário é olhar para o outro lado. E embora eu tenha sim abandonado esse amor, eu não naufraguei, eu pulei daquele barco, daquele jeito. Era a melhor opção no momento e, analisando agora, continua sendo. Amor sem divisão é castigo. Amar sozinho é invenção.
Ao pular do barco a gente percebe o quão rasa a água é, diferentemente do que pensamos enquanto estamos lá em cima. Eu pulei e não me molhei nada, eu pulei e só os meus pés ficaram ensopados. E, assim, a gente sempre está pronto para caminhar novamente.
Segredo
Estou em falta com a leitura de vários livros. Como se organiza com pouco tempo e tanto trabalho?
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